Segurança Jurídica e Tribunais de Contas – o julgamento do RE 636.553/RS pelo STF
Recentemente, em 19/02/2020, o Supremo Tribunal Federal proferiu julgamento que constitui um marco no trato do princípio da segurança jurídica pela jurisprudência pátria. Trata-se do RE 636.553/RS, submetido ao regime da repercussão geral (Tema 445), através do qual foi fixada a seguinte tese:
“Em atenção aos princípios da segurança jurídica e da confiança legítima, os Tribunais de Contas estão sujeitos ao prazo de 5 anos para o julgamento da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma ou pensão, a contar da chegada do processo à respectiva Corte de Contas”
O acórdão significou uma reviravolta no entendimento até então consolidado pelo STF em diversos acórdãos proferidos por ambas as Turmas, segundo o qual não haveria prazo para a apreciação, pelos Tribunais de Contas, da legalidade de atos de concessão de aposentadoria a servidores públicos ou pensão a seus dependentes. Segundo o Supremo Tribunal Federal, a análise feita pelas Cortes de Contas é apenas uma etapa posterior de um ato administrativo complexo, que somente é aperfeiçoado após a validação por elas.
Por essa razão, o prazo decadencial quinquenal de que dispõe a União para invalidar os próprios atos (art. 54 da Lei nº 9.784/99) não se aplica, segundo o Supremo Tribunal Federal, à análise dos Tribunais de Contas sobre o registro de aposentadorias e pensões do funcionalismo público. A única ponderação que o STF vinha fazendo era a de que, ultrapassado o prazo de cinco anos para que o Tribunal de Contas apreciasse tais atos, deveria ser assegurado o contraditório e a ampla defesa aos particulares beneficiários das referidas aposentadorias e pensões. Dentre inúmeros outros acórdãos em idêntico sentido, podem ser citados os seguintes: MS 35662 AgR, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, j. 22/03/2019; MS 32336 AgR, Rel. Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, j. 23/06/2017 e MS 28019, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, j. 18/04/2017.
Ao definir a tese resultante do Tema 445 de sua Repercussão Geral, o Supremo Tribunal Federal manteve o entendimento de que as concessões de aposentadorias e pensões no âmbito dos regimes próprios de previdência social são atos complexos que somente se aperfeiçoam com a sua apreciação e validação pelos Tribunais de Contas. Por isso, permaneceu a conclusão de que o prazo decadencial de cinco anos para a Administração rever os próprios atos, quando ilegais, não se aplica às Cortes de Contas, uma vez que elas não anulam as aposentadorias e pensões eivadas de vícios, mas apenas deixa de aperfeiçoá-las.
A despeito da natureza simples ou complexa dos atos de concessão de aposentadoria ou pensão nos regimes próprios de previdência social, o fato é que a inexistência de prazo para que os Tribunais de Contas apreciassem a legalidade de tais atos trazia evidente insegurança jurídica aos beneficiários, porquanto é usual que a manifestação ocorra muitos anos após o jubilamento ou o óbito do servidor, período em que ele ou seus dependentes permaneceriam sujeitos à cassação dos benefícios de caráter alimentar usufruídos há longa data e de boa-fé. Agiu bem, portanto, o STF na mudança de sua jurisprudência.
Mesmo que se afaste o prazo decadencial de cinco para que a Administração anule os próprios atos, não se pode aceitar que qualquer ato administrativo que beneficie particulares de boa-fé esteja eternamente sujeito a revisão.
Com efeito, a segurança jurídica é imanente, indissociável da ideia de Direito. É, portanto, um dos pilares de sua sustentação. Normalmente, a segurança jurídica caminha junto com o princípio da legalidade, que objetiva justamente assegurar que os fatos sejam qualificados e produzam seus efeitos jurídicos de acordo com a lei, proporcionando aos indivíduos confiança na eficácia da Constituição e das leis e previsibilidade da incidência das normas jurídicas tal qual estipuladas.
Muitas vezes, entretanto, e por mais paradoxal que isso possa parecer, a estrita busca pela legalidade implica afronta à segurança jurídica, especialmente na vertente da confiança na manutenção de situações que, a despeito de serem aparentemente legais, não o eram, mas que se prolongaram no tempo. Há, em casos tais, um aparente conflito entre dois aspectos da segurança jurídica: o da necessidade de estabilidade de situações fáticas já consolidadas e o da certeza de operatividade da lei.
No campo das relações privadas, os institutos da prescrição e da decadência, encampados pela própria lei e pertencentes, portanto, também à esfera da legalidade, servem, via de regra, para equacionar este potencial conflito interno dos aspectos da segurança jurídica. Opta-se, assim, por preservar a manutenção de estados ou situações de fato não questionados pela parte interessada durante um período de tempo.
Nas relações jurídicas de direito público, por outro lado, há duas peculiaridades que merecem atenção quando se trata de possível confronto entre as vertentes da segurança jurídica consistentes na confiança na manutenção de situações já sedimentadas e na expectativa de plena eficácia da lei, ou então de conflito entre a segurança e a legalidade, conforme se prefira. A primeira traduz-se na submissão dos cidadãos aos poderes e prerrogativas jurídicas conferidas ao Estado no exercício daquilo que se costuma chamar de jus imperii. A segunda é a presunção de legalidade e de legitimidade dos atos praticados pela Administração Pública.
Desta maneira, além da necessária confiança de que estados ou situações jurídicas que permanecem hígidos por razoável período de tempo, sobretudo quando aparentam legalidade, assim persistam, nas relações jurídicas que envolvem a Administração, os administrados, dadas a sujeição aos poderes do Estado e a presunção de que os atos por ele praticados são legítimos, são induzidos de forma ainda mais incisiva a crer que os atos jurídicos administrativos e as situações que deles decorrem estão em conformidade com a lei.
Neste cenário, por mais que a inevitável sujeição do Estado ao princípio da legalidade imponha, via de regra, o exercício do dever/poder de autotutela administrativa para anular ou sanar atos ilegais, na esteira da Súmula nº 473 do Supremo Tribunal Federal[1] e do art. 53 da Lei nº 9.784/99[2], devem-se preservar, em todo caso, as legítimas expectativas dos beneficiários destes atos e a confiança que eles depositaram na sua validade, de forma que a busca pela legalidade não implique insegurança e instabilidade desmedidas.
Segurança Jurídica e Tribunais de Contas – o julgamento do RE 636.553/RS pelo STF
A confiança na manutenção do status quo ganha ainda mais significado quando a situação jurídica favorável ao administrado prolonga-se por razoável período de tempo, levando-o a crer que ela, aparentando estar em conformidade com a lei, realmente está consolidada e protegida pelo direito.
Nesta mesma linha de raciocínio, frisou MIGUEL REALE [3] que, mesmo sem previsão legal, deve haver um prazo para que a administração anule seus atos:
Assim sendo, se a decretação de nulidade é feita tardiamente, quando a inércia da Administração já permitiu se constituíssem situações de fato revestidas de forte aparência de legalidade, a ponto de fazer gerar nos espíritos a convicção de sua legitimidade, seria deveras absurdo que, a pretexto da eminência do Estado, se concedesse às autoridades um poder-dever indefinido de autotutela.
Neste contexto, é preciso atenção na interpretação da Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal, especialmente no trecho que dispõe que “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos…”, de maneira a afastar a conclusão de que dos atos ilegais não se originam direitos dignos de tutela, o que justificaria a sua anulação ou a cessação de sua eficácia a qualquer tempo. Quando de sua edição, a aludida súmula objetivou refutar o argumento comumente invocado pelos particulares de que a anulação dos atos ilegais pela própria Administração encontraria óbice na proteção ao direito adquirido. O STF esclareceu, então, que de atos ilegais não surgem direitos a serem qualificados como adquiridos, ao contrário do que se dá com a revogação, versada pela mesma súmula em sua parte final, nos seguintes termos: “… ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”. Sendo assim, o verbete sumular nada tem a ver com a questão da segurança jurídica.
Segurança Jurídica e Tribunais de Contas – o julgamento do RE 636.553/RS pelo STF
A propósito, a tutela jurídica sobre os efeitos favoráveis aos administrados decorrentes de um ato administrativo ilegal não decorre do direito adquirido, mas da proteção à confiança, como sucedâneo da segurança jurídica, resultante do tempo durante o qual o ato produziu seus regulares efeitos e da boa-fé daquele a quem ele favorece, fatos posteriores ao próprio ato.
O objeto de proteção nestes casos, ao contrário do que pode parecer num primeiro momento e do que é muitas vezes difundido, não é uma simples situação de fato, assim entendida como um fenômeno natural ou cultural alheio ao direito, mas uma situação jurídica, ou seja, amparada pelo ordenamento jurídico. Ainda que o ato ou a situação a serem preservados sejam contrários à lei stricto sensu, eles encontram proteção no princípio constitucional da segurança jurídica, existente em qualquer Estado de Direito.
A necessidade de proteção e busca pela segurança jurídica, ainda que já seja questão tranquila nos âmbitos acadêmico, doutrinário e jurisprudencial, deixou de ser um princípio constitucional implícito. Encontra-se atualmente expressa na Constituição, que, ao dispor sobre o instituto da súmula vinculante, no art. 103-A, § 1º, estabelece que ela terá como objeto normas determinadas cuja controvérsia “acarrete grave insegurança jurídica”.
Parâmetros para o enfrentamento das vertentes do princípio da segurança jurídica, especialmente com vistas à proteção da confiança nas situações já consolidadas, foram positivados também pela legislação ordinária. Com efeito, o art. 27 da Lei nº 9.868/99, reproduzido pelo art. 11 da Lei nº 9.882/99, permite ao STF restringir os efeitos da declaração da inconstitucionalidade da lei “tendo em vista razões de segurança jurídica”.
Podem ser encontradas, ainda, outras referências legislativas expressas relacionadas à proteção da segurança jurídica analisada sob o enfoque da confiança e da manutenção de estados ou situações aparentemente válidos e que se prolongaram por tempo razoável. Citem-se, por exemplo, o art. 2º da Lei nº 9.784/99, que a elenca – a segurança jurídica – como princípio da Administração Pública; os arts. 525, §13, e 535, §6º, do Código de Processo Civil, pelos quais o Supremo Tribunal Federal, em atenção também à segurança jurídica, pode modular os efeitos de suas decisões que impliquem o reconhecimento posterior de inexigibilidade de títulos executivos judiciais; o art. 927, §§3º e 4º, também do Código de Processo Civil, que possibilitam a modulação dos efeitos da alteração de jurisprudência dominante dos tribunais superiores para a proteção da segurança jurídica, a qual deve, ainda, servir como parâmetro para a alteração de súmula, jurisprudência ou tese pacificada; e o art. 23 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (incluído pela Lei nº 13.655/2018), o qual preceitua que decisões administrativas ou judiciais que alterem a interpretação ou orientação sobre normas de conteúdo indeterminado, impondo novas obrigações ou restrições de direitos, prevejam um regime de transição sempre que necessário para que as novas obrigações sejam cumpridas de forma proporcional, equânime e eficiente.
Enfim, o princípio da segurança jurídica impõe a proteção à confiança do cidadão nos atos praticados pelo Estado, os quais, por esta razão, não podem ser reconsiderados, cessados, desfeitos ou anulados por vício de ilegalidade após um razoável transcurso de tempo e em prejuízo dos particulares favorecidos, a menos que se demonstre, em situações excepcionais, que a preservação da legalidade tutela bem ou valor ainda mais relevante do que as legítimas expectativas do administrado interessado e do que o direito que lhe foi assegurado pelo ato a ser desfeito.
Segurança Jurídica e Tribunais de Contas – o julgamento do RE 636.553/RS pelo STF
Resta, então, verificar qual seria o prazo no qual a Administração poderia anular, suspender ou fazer cessar seus próprios atos dos quais resultassem efeitos favoráveis aos administrados, sem que isso se configurasse afronta ao princípio da segurança jurídica.
O prazo de cinco anos é o mais adequado, por ser ele recorrente nas relações jurídicas que envolvem a Administração. Observe-se, por exemplo, que: a) o prazo prescricional incidente sobre toda e qualquer pretensão contra a Fazenda Pública é de cinco anos, nos termos do art. 1º do Decreto nº 20.910/32; b) é de cinco anos o prazo decadencial para constituição de créditos tributários pelo Estado contra seus contribuintes, conforme o art. 173 do Código Tributário Nacional, sendo este mesmo prazo previsto como de prescrição para a cobrança dos referidos créditos (art. 174 do CTN) e para a dedução de pretensão de restituição de indébito pelos contribuintes (art. 168 do CTN); c) é dentro do prazo de cinco anos que a Administração tem o direito de exercer ação punitiva, mediante a aplicação das respectivas sanções, decorrentes de seu poder de polícia, bem como de cobrar os respectivos créditos, de acordo com os arts. 1º e 1º-A da Lei nº 9.873/99; d) é de cinco anos o prazo para ajuizamento de ação popular destinada à anulação de atos lesivos ao patrimônio público, nos termos do art. 21 da Lei nº 4.717/65; e) este mesmo prazo de cinco anos já foi considerado pelo Decreto-lei nº 72/66 (art. 8º, XII), pela Lei nº 6.309/75 (art. 7º) e pela Lei nº 9.784/99 (art. 54) como limitação temporal para a anulação de atos administrativos, inclusive previdenciários.
São dignas de elogios, portanto, a decisão tomada pelo STF no RE 636.553/RS, bem como a tese fixada no Tema 445 de sua Repercussão Geral.
Bruno Henrique Silva Santos é Juiz Federal e autor do Livro Prescrição e Decadência no Direito Previdenciário 2 Ed.
Para acompanhamento processual do TEMA 445 do STF, clique aqui.
[1] Súmula 473: “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.
[2] Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.
[3] REALE, Miguel. Revogação e Anulamento dos Atos Administrativos. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 85/86.