A REGULAMENTAÇÃO DA CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA DO MOTORISTA DE APLICATIVO FOI A MELHOR ESCOLHA ECONÔMICA E SOCIAL?
Deomar Adriano Gmach
A economia brasileira já não anda bem há alguns anos. O boletim Focus de 17 de maio de 2019, após começar o ano com uma expectativa de crescimento do PIB de 2,5%, traz, pela décima vez no ano, uma expectativa negativa indicando que a economia brasileira tende a crescer apenas 1,24% no decorrer de 2019. O comportamento da economia Brasileira ao longo dos últimos anos já leva alguns economistas a afirmar que o Brasil está inserido em um cenário pior do que a da famosa “década perdida”, na qual o crescimento anual médio do Brasil na década de 80 foi de 1,6% ao ano. Se os dados do Boletim Focus se consolidar até o final da atual década o Brasil terá tido um crescimento anual de 0,9%. (INFOMONEY, 2019)
Em meio a esse cenário econômico, o Governo Federal, no dia 14 de maio de 2019, por meio do Decreto nº 9.792, regulamentou a contribuição previdenciária do motorista de aplicativo. Compreender o ambiente econômico significa também compreender os impactos do mesmo para a condução das políticas públicas, incluídas nesse ambiente as políticas previdenciárias. Nesse sentido é necessário fazer alguns apontamentos sobre o referido Decreto (e também a Lei nº 13.640/2018, a qual ele buscou regulamentar) para tentar entender se a opção tomada pelo Estado é a que mais atende aos anseios sociais e econômicos da população.
O referido Decreto, em seu artigo 02° estabelece que a inscrição do motorista de aplicativo como contribuinte individual será feita por ele mesmo, priorizando o uso dos canais eletrônicos da Autarquia. Já o § único do referido artigo dá a opção de o motorista se filiar ao RGPS como MEI.
O primeiro apontamento que se faz é de caráter técnico. O Decreto, logo após afirmar que o motorista de aplicativo é contribuinte individual para fins previdenciários, permite que o mesmo possa verter contribuições ao RGPS como se Microempreendedor (MEI) fosse. O artigo 4º do Decreto remete o leitor ao artigo 30, inciso II da Lei nº 8.212/91 para dizer que o motorista de aplicativo tem até o dia 15 do mês seguinte ao da competência para verter a sua contribuição previdenciária.
Ocorre que o MEI não se curva a essa regra. De acordo com o artigo 18-A, inciso V da Lei Complementar nº 128/2009 o MEI recolhera os seus tributos (ICMS, ISS e Contribuição Previdenciária) conforme os preceitos estabelecidos por um Comitê Gestor, responsável pelo tratamento da matéria. O mencionado comitê gestor, desde sempre, estabeleceu o dia 20 do mês seguinte ao da competência como prazo fatal ao recolhimento dos tributos.
O Poder Executivo, ao dispensar os cuidados necessários e a boa técnica ao tratamento da matéria, criou a confusão normativa adorada pelas bancas organizadoras de concursos públicos: “o prazo para o recolhimento da contribuição previdenciária do Microempreendedor Individual é o dia 20 do mês seguinte a competência a qual ela se refere, exceto se ele for motorista de aplicativo.” Além do mais a referida regra tende a trazer grandes dificuldades práticas a sua operacionalização pelo INSS e pela SRFB.
Continuando. Desde que chegou ao Brasil, em 2014, o UBER, principal empresa mundial a intermediar, por meio de aplicativo de celular, o transporte de passageiros em veículo particular, esteve envolvida em uma centena de discussões. Por oferecer um serviço, de certo modo, parecido com o serviço de taxi, mas sem sofrer as taxações e os ônus dessa categoria, uma primeira contenda foi com essa categoria profissional. Houve ao redor do País, nos últimos anos, uma série de manifestações por parte dos taxistas com o objetivo de proibir (ou regulamentar) a atuação dos motoristas de aplicativo. Até que por fim, em 2018, por meio da Lei nº 13.640 que, atualizando as diretrizes da política nacional de mobilidade urbana, instituída pela Lei nº 12.587/2012, regulamentou o transporte individual remunerado de passageiros. Permitindo assim a atuação de aplicativos como o UBER e o 99.
O ponto que interessa a presente discussão é o do artigo 11-A, § único, inciso III da referida regulamentação. In verbis: “exigência de inscrição do motorista como contribuinte individual do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), nos termos da alínea h do inciso V do art. 11 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991.” (grifo nosso)
A Lei, que ora encontra-se regulamentada pelo Decreto nº 9.792/2019, remete o leitor ao artigo 11, inciso V, alínea “h” da Lei nº 8213/91. Esse último preceito normativo diz ser contribuinte individual a pessoa física que exerce, por conta própria, atividade econômica de natureza urbana, com fins lucrativos ou não.
Do ponto de vista contributivo, seguindo a orientação da Lei, o motorista de aplicativo deve verter as suas contribuições nos termos do artigo 21 da Lei nº 8.212/91. Deve verter contribuições aplicando uma alíquota de 20% sobre o seu salário de contribuição.
Para poder receber a benesse do artigo 21, parágrafo 2º inciso I da Lei de custeio (poder contribuir com uma alíquota de 11% sobre o salário de contribuição) o motorista de aplicativo teria de demonstrar que não possui nenhum tipo de relação de emprego com empresa ou equiparado. O que é extremamente questionável, tendo em vista a participação das empresas que fazem a intermediação do serviço via aplicativo de celular.
Os Decretos expeditos pelo Presidente da República têm fundamento no artigo 84, inciso IV da Constituição Federal. Nas palavras do saudoso Celso Antônio Bandeira de Mello:
a Constituição prevê os regulamentos executivos porque o cumprimento de determinadas leis pressupõe uma interferência de órgãos administrativos para a aplicação do que nela se dispõe, sem, entretanto, predeterminar exaustivamente, isto é, com todas as minúcias, a forma exata da atuação administrativa pressuposta. (MELLO, 2010, p. 351)
No presente caso, não há necessidade alguma de regulamentação da sua situação previdenciária. A lei já foi bastante clara ao enquadrá-lo como contribuinte individual autônomo. Bastando ao mesmo fazer o seu recolhimento previdenciário como milhares de vendedores ambulantes, pedreiros autônomos e toda a sorte de trabalhadores enquadrados no artigo 11, inciso V, alínea “h” da Lei nº 8.213/91 já o fazem.
Quanto aos limites dos Decretos Presidenciais, afirma o referido administrativista: “ao regulamento desassiste incluir no sistema positivo qualquer regra geradora de direito ou obrigação novos. Nem favor nem restrição que já não contenham previamente na lei regulamentada podem ser agregados pelo regulamento.”(MELLO, 2010, p. 355)
Nesse sentido, no ponto em destaque, é ilegal o Decreto regulamentador, pois vai além do que determina a Lei e contraria a vontade do Poder Legislativo, concedendo benesse (a de poder contribuir com uma alíquota de 5% sobre o salário mínimo, na condição de MEI) não prevista na Lei.
Voltando às várias discussões que a inserção dessa nova modalidade de transporte de passageiros gerou no Brasil, é necessário ainda refletir sobre uma possível vinculação trabalhista entre o motorista de aplicativo e a empresa que faz a intermediação do transporte.
Antes disso é necessário estabelecer, para fins pedagógicos, a correlação entre Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. A análise histórica da proteção social no Brasil está muito ligada aos trabalhadores que passaram a gozar, durante a revolução industrial, de alguns benefícios, em decorrência de alguns eventos, como o acidente de trabalho. Por isso hoje, ainda é muito usual a afirmação de que o Direito Previdenciário surgiu do Direito do Trabalho o qual foi responsável por regulamentar a relação entre patrões e empregados. (IBRAHIM, 2011, p. 143-144)
Embora seja consenso a autonomia do Direito Previdenciário em relação a outras áreas do direito, a sua interação com o Direito do Trabalho se mostra extremamente relevante em vários aspectos. Cita-se como exemplo a questão da modalidade de filiação previdenciária.
A UBER, desde a sua criação em 2009, vem sofrendo ao redor do mundo, ações de cunho trabalhista que objetivam o reconhecimento do vínculo entre ela e os motoristas usuários do aplicativo. Prova disso é a recente decisão de pagar 20 milhões de dólares para motoristas da Califórnia e de Massachusetts que pleiteavam o reconhecimento do vínculo trabalhista, em acordo pré processual (REVISTA VEJA, 2019), com a clara intenção de evitar que o poder judiciário dos Estados Unidos crie jurisprudência desfavorável a seus interesses. Ou então a recente derrota no Reino Unido, onde o tribunal de apelação manteve uma decisão de 2016 que definiu que os motoristas da UBER não eram empreendedores, mas sim funcionários contratados, e por isso a empresa deveria garantir a eles direitos trabalhistas básicos, como garantia de um salário mínimo, direito a período de férias e não descontar do salário faltas por motivo de doença. (CANALTECH, 2019)
No Brasil, não há consenso na jurisprudência sobre o assunto. Embora já seja possível apontar importantes vitórias dos trabalhadores quanto ao reconhecimento do vínculo. Como a do processo nº 1000123-89.2017.5.02.0038, da 15ª Turma Regional do Trabalho de São Paulo, onde a Desembargadora Beatriz de Oliveira Lima, reconheceu que o motorista não possui verdadeira autonomia, devendo obedecer a regras de conduta impostas pela empresa. Ou a decisão monocrática tomada pelo magistrado Marcio Toledo Gonçalves, da 33º Vara do Trabalho de belo Horizonte que, no processo nº 0011359-34.2016.5.03.01112, além de decidir favorável a existência do vinculo laboral, fez uma profunda análise quanto aos requisitos do vínculo empregatício.
Embora se reconheça que há ainda um longo caminho até uma possível pacificação do assunto na justiça do trabalho brasileira, voltando ao foco principal do presente ensaio, é possível afirmar que: o motorista de aplicativo não desenvolve por conta própria atividade laboral; há uma clara interferência da empresa responsável pelo aplicativo no desempenho da atividade; há lucro por parte dessa empresa; existe a fixação de padrões mínimos…
Nesse sentido se não há consenso sobre a relação de trabalho entre a responsável pelo aplicativo (UBER, 99, Calibry…) e o motorista, é possível afirmar ao menos que este presta serviço àquela.
Sendo assim, com relação a contribuição previdenciária na prestação de serviços, o artigo 216, inciso I, alínea “a” do Decreto nº 3.048/99 estabelece que a empresa tomadora do serviço é obrigada a arrecadar a contribuição devida pelo contribuinte individual prestador de serviços, descontando-a de sua remuneração.
Em um ambiente econômico onde a arrecadação do Estado está cada vez menor, acompanhando o desempenho econômico do País, coube ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo regulamentar atividade econômica extremamente lucrativa (se não para o motorista, com certeza para a empresa) com claras possibilidades de se verter expressivos valores aos cofres do RGPS.
Errou o Poder Legislador, pois teve a sua frente a opção de dar novos contornos ao litígio entre a UBER e os trabalhadores brasileiros, prestigiando estes últimos em detrimento da primeira. Não deve prevalecer o entendimento de que tal medida prejudica a livre iniciativa. O valor social do Trabalho (artigo 01, inciso IV da CF/88) e a proteção do trabalhador face à automação (artigo 07, inciso XXVII da CF/88) devem prevalecer. Tanto é assim que a UBER vem sofrendo sérias derrotas ao redor do mundo em Países como Estados Unidos e Reino Unido. Melhor teria sido o Estado Brasileiro ter tomado parte favorecendo a proteção do trabalhador.
Ademais, optar pelo enquadramento do motorista de aplicativo como prestador de serviços, além de aumentar a arrecadação do Estado com os tributos devidos pela pessoa jurídica, traria uma maior certeza de proteção previdenciária aos trabalhadores. Visto que enquadrar os mesmos como trabalhadores autônomos, os obrigando a recolher por conta própria a sua contribuição previdenciária, não garante que os mesmos de fato optem por verter mensalmente as contribuições.
Errou o Poder Executivo, pois, além de não ter se atentado ao ordenamento jurídico quanto ao prazo para o recolhimento da contribuição previdenciária, extrapolou os limites da Lei concedendo ao contribuinte, por meio de Decreto, benesse não prevista pelo Legislador.
Sob o ponto de vista econômico, o Estado lançou mão da opção que, certamente, lhe trará menor retorno tributário. Já sob o ponto de vista social, o Estado optou pela direção que traz menos efetividade à proteção social do indivíduo, uma vez que reputou a este uma obrigação tributária que, se destinada a Pessoa Jurídica, alcançaria com mais vigor o seu fim último.
REFERÊNCIAS:
IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 16 ed. rev., atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2011.
LANZANA, Antonio. INFOMONEY – A economia Brasileira em 2019: uma nova decepção? Disponível em: https://www.infomoney.com.br/blogs/economia-e-politica/um-brasil/post/8172785/a-economia-brasileira-em-2019-nova-decepcao> Acesso em: 25 de mai de 2019.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010.
REVISTA VEJA. UBER pagará US$ 20 milhões em ação trabalhista de motoristas nos EUA. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/economia/UBER-pagara-us-20-milhoes-em-acao-trabalhista-de-motoristas-nos-eua/> Acesso em: 25 mai. de 2019.
SILVA, Rafael Rodrigues da. CANALTECH. Após perder ação trabalhista, UBER se vê obrigada a recorrer à Suprema Corte. Disponivel em: < https://canaltech.com.br/apps/apos-perder-acao-trabalhista-UBER-se-ve-obrigada-a-recorrer-a-suprema-corte-129441/> Acesso em: 25 mai. de 2019.
TORRESANI, Eduardo. JUSBRASIL. Motoristas do UBER, possuem vínculo de emprego ou não? Motoristas parceiros ou empregados? Disponível em: < https://torresani.jusbrasil.com.br/artigos/482070647/motoristas-do-UBER-possuem-vinculo-de-emprego-ou-nao> Acesso em: 25 de mai de 2019.