O CPC é garantia contra “armadilhas” em matéria previdenciária?
Não raras vezes, somos surpreendidos por situações que podem ser epitetadas de verdadeiras “armadilhas”. A mais comum delas é aquela em que a parte autora clama, desde a petição inicial, pela produção da prova de natureza testemunhal e/ou pericial, mas vê o seu pedido indeferido. Sentenciando, o juiz reconhece a especialidade do período e concede o benefício postulado – tudo de bom!
O que acontece depois? Bom. O autor deixa de apelar da sentença por falta de interesse na reforma da sentença. Em segunda instância, contudo, a conclusão extraída pelo tribunal ou turma recursal, sobre os mesmos documentos analisados pelo juiz de primeira instância, acaba tomando uma linha diametralmente oposta, por se entender que a função (genérica) impossibilita a verificação das atividades, o laudo técnico foi elaborado a partir de informações unilaterais, a documentação não comprova a atividade especial, enfim, os motivos são os mais variados – e não são eles o problema quando analisados isoladamente.
O que há em comum nessas situações? A prova testemunhal, indeferida, tinha como finalidade confirmar/individualizar as atividades efetivamente exercidas pelo segurado/beneficiário, a fim de permitir a realização de prova pericial (in loco ou estabelecimento similar) ou possibilitar a aplicação de laudos por analogia, para se aferir os agentes nocivos aos quais estava exposto, de modo habitual e permanente. A prova pericial tinha como finalidade verificar a real situação das condições de labor, para o próprio juiz declarar, de forma definitiva ou minimamente segura, a existência (ou não) do direito. Com efeito, o tribunal ou turma recursal acabam afastando a natureza especial da atividade com fundamento na ausência de informações ou dados técnicos que poderiam ser supridos, exatamente, pela prova testemunhal ou pericial.
O CPC é garantia contra “armadilhas” em matéria previdenciária?
Façamos um balanço disso. O indeferimento da prova testemunhal e/ou pericial em primeira instância, a sentença procedente para conceder a aposentadoria postulada, a falta de interesse na reforma da decisão e a conclusão extraída pelo tribunal ou turma recursal sobre os mesmos documentos juntados ou produzidos em juízo, criam uma situação que implica verdadeira armadilha procedimental, fazendo, em muitos casos, o contraditório enquanto garantia de influência e não surpresa simplesmente sucumbir, deixando o processo distante da sua verdadeira finalidade.[1]
Trata-se de uma situação que causa surpresa e injustiça ao autor. Tal situação desorienta não apenas a ação do autor, – porque o comportamento processual de que dele se esperava em primeira instância acabou, mesmo assim, o prejudicando –, mas agride o devido processo legal. Destarte, mesmo sem recorrer da sentença, resta configurado o cerceamento de defesa.
O que está em jogo, nesses casos, é o direito fundamental à prova diante de uma nova e surpreendente conclusão extraída – sobre os mesmos documentos juntados aos autos – pela decisão em segunda instância, tendo em vista o contraditório enquanto garantia de influência e não surpresa, sem falar no princípio da colaboração.
Sob forte influência do sistema alemão, o art. 369 do CPC/2015 não só reproduz literalmente o texto do art. 332 do CPC/73, mas vai além, destacando o “direito a influenciar”[2]:
As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.
O contraditório também aparece como garantia de não surpresa, devendo, por isso, a parte ser ouvida antes de uma decisão que envolva seus direitos, a fim de poder ter influência sobre o processo e seu resultado, o que fica claro nos artigos 7, 9 e 10 do CPC/2015. Aliás, o §1º do art. 927 determina que os juízes e tribunais observem o disposto no art. 10. Vejamos o que diz esse último: “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.
Sempre que a prova antes considerada suficiente pelo juiz de primeira instância deixar dúvidas em segunda instância, ao tribunal ou turma recursal cabe converter o feito em diligência, o que pode – deve – ser feito de ofício, nos termos do art. 370 do CPC (aplicável em todas as instâncias), além do arts. 442 e 443, II, do CPC. Para confortar e demonstrar a viabilidade de tal entendimento, recomenda-se a leitura da decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do AgInt no Agravo em Recurso Especial Nº 675.192 – RS, de relatoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho.[3]
No JEF temos a Questão de Ordem 20 da TNU:Se a Turma Nacional decidir que o incidente de uniformização deva ser conhecido e provido no que toca a matéria de direito e se tal conclusão importar na necessidade de exame de provas sobre matéria de fato, que foram requeridas e não produzidas, ou foram produzidas e não apreciadas pelas instâncias inferiores, a sentença ou acórdão da Turma Recursal deverá ser anulado para que tais provas sejam produzidas ou apreciadas, ficando o juiz de 1º grau e a respectiva Turma Recursal vinculados ao entendimento da Turma Nacional sobre a matéria de direito. (Aprovada na 6ª Sessão Ordinária da Turma Nacional de Uniformização, do dia 14.08.2006).
Na medida em que o juiz não pode – ou não quer – postergar sua decisão na espera por mais provas e/ou melhores informações, há que se redobrar o cuidado. Alguns juízes estão deixando todo o trabalho para os tribunais ou turmas recursais. A fundamentação genérica, repetida e estranha para “justificar” a não caracterização da atividade especial de diferentes períodos deixa entrever que nem sempre são levados em conta os argumentos nem a prova juntada aos autos, enfim, ignoram-se as individualidades e as particularidades do caso concreto. Pedidos de prova pericial são indeferidos sob o pretexto tanto da irregularidade como da ausência de inconsistências no preenchimento dos formulários, ou seja, quando existem vícios (formais), estes são transferidos para o segurado, poupando os verdadeiros responsáveis pela sua emissão e fiscalização; quando o PPP atende aos requisitos formais, este é garantia de fidedignidade e consenso sobre a realidade laboral (se me entendem a ironia).
Tanto as partes quanto o órgão judicial devem agir e interagir entre si com boa-fé e lealdade, na busca da correta aplicação das normas jurídicas ao caso concreto, com ênfase para a realização dos direitos fundamentais-sociais, que é a função do processo, e não apenas reproduzir a realidade.
O veneno das cobras acaba virando antídoto que salva vidas. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que cobras salvam mais vidas do que matam, ou, o CPC possui o antídoto contra suas próprias armadilhas.
- Diego Henrique Schuster é Advogado, Mestre (UNISINOS) e Doutorando Direito (UNISINOS). Autor das obras Direito Previdenciário: para compreender e co-autor da obra A garantia da coisa julgada no processo previdenciário, ambas publicadas pela Alteridade Editora.
- Artigo: O CPC é garantia contra “armadilhas” em matéria previdenciária?
___________________________________
Bah1: Aqui se poderia defender a extinção do feito sem resolução de mérito. Não há espaço aqui para tratar disso.
Bah2: Cf.: RIBEIRO, Darci Guimarães. Questões relevantes da prova no novo Código de Processo Civil. In: BOECKEL, Fabrício Dani de; ROSA, Karin Regina Rick; SCARPARO, Eduardo. Estudos sobre o novo Código de Processo Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015.
Bah3: Parece desnecessário, mas demandas que envolvem verbas alimentares não deverão ser interpretadas como uma relação de Direito Civil ou Direito Administrativo no rigor dos termos, mas sim como fórmula ou tutela ao hipossuficiente, ao carecido, ao excluído. Assim, os pleitos, quando se trata de benefícios com caráter previdenciário, devem ser analisados com certa flexibilidade (AgRg no AREsp 414.975/MS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 14/02/2017, DJe 24/02/2017).