“Inconstitucionalidade do prazo decadencial do art. 103-A da Lei 8.213/91” é o mais novo artigo de
Bruno Henrique Silva Santos
A fixação de um prazo decadencial para a anulação, pela Administração, de atos próprios dos quais decorram efeitos favoráveis aos particulares é uma medida impositiva para a preservação da segurança jurídica. Por essa razão, ainda que referido prazo não fosse previsto expressamente em lei, a ação do Estado não seria ilimitada no tempo.
No que concerne especificamente ao Direito Previdenciário, o único período em que não houve um prazo decadencial legalmente estipulado para que o INSS anulasse ou revisasse, por iniciativa própria, atos favoráveis aos segurados foi entre 13 de abril de 1992 (data da publicação da MP 302/92, convertida na Lei nº 8.422/92, a qual revogou a Lei nº 6.309/75) e 01 de fevereiro de 1999 (data da entrada em vigor da Lei nº 9.784/99). Antes e após este interstício, a Autarquia Previdenciária sempre esteve limitada ao período de cinco anos para exercer o dever/poder da auto-tutela administrativa.
Justamente por ser o prazo quinquenal tradicionalmente estabelecido como de prescrição e decadência nas questões que envolvem a Administração Pública é que a doutrina previdenciária majoritária estipulou esse mesmo lapso temporal como limitador da ação anulatória do INSS no período em que não havia prazo decadencial consignado em lei. Partiu-se do pressuposto de que o quinquênio é tempo suficiente para que o Estado tome conhecimento das irregularidades dos próprios atos e adote as medidas necessárias ao restabelecimento da legalidade, sem que os segurados permaneçam por período demasiado sob o risco de terem seus benefícios revistos ou cancelados. Essa conclusão é, de fato, lógica na medida em que praticamente todas as disposições legais concernentes à prescrição ou decadência que envolvem a Administração estabelecem o tempo de cinco anos como suficiente para compatibilizar o princípio da legalidade com o da confiança.
Em suma, via de regra, pretensões contra a Fazenda Pública para a reparação de direitos por ela violados, ou pretensões deduzidas pela Fazenda Pública com o objetivo de atender a interesses seus, devem ser exercidas no prazo de cinco anos. Da mesma maneira, a ação própria da Administração para anular atos administrativos, independentemente de sua natureza, deve ocorrer no mesmo prazo de cinco anos (art. 54 da Lei nº 9.784/99).
Inconstitucionalidade do prazo decadencial do art. 103-A da Lei 8.213/91
Sucedeu, no entanto, que, de forma inovadora na história do ordenamento jurídico administrativo pátrio, a Medida Provisória nº 138/2003, posteriormente convertida na Lei nº 10.834/2004, instituiu um prazo de dez anos para que a Administração Previdenciária anule atos seus dos quais decorram efeitos favoráveis aos segurados.
Tratando-se de um lapso temporal discrepante daquele que vinha sendo tradicionalmente utilizado para a limitação do exercício da auto-tutela pelo Estado, é preciso, antes de tudo, compreender as razões que levaram o legislador a este tratamento diferenciado na matéria previdenciária. Para isso, convém analisar a exposição de motivos da MP nº 138/2003, da qual se extrai os seguintes excertos:
Excelentíssimo Senhor Presidente da República,
Submetemos à apreciação de Vossa Excelência proposta de edição de Medida Provisória que tem por finalidade alterar dispositivos das Leis nº 8.213, de 24 de julho de 1991, a fim de ampliar prazos para a produção de efeitos do instituto da decadência por elas disciplinado e atender, de modo imediato e com maior adequação, ao interesse público no que se refere à aplicação do instituto da decadência, relativamente a direitos previdenciários.
(…)
No que se refere ao art. 103 da Lei nº 8.213, de 1991, a Medida Provisória nº 1.523-9, de 27 de junho de 1997, inovou o direito previdenciário ao alterar esse dispositivo da Lei de Benefícios para instituir o prazo decadencial de dez anos para todo e qualquer direito ou ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão de benefício, a contar do dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação ou, quando for o caso, do dia em que o segurado tomar conhecimento da decisão indeferitória definitiva no âmbito administrativo. No entanto, a Medida Provisória nº 1.663-15, de 22 de outubro de 1998, convertida na Lei nº 9.711, de 20 de novembro de 1998, alterou novamente o dispositivo, para fixar em cinco anos o prazo decadencial.
A inovação mostrou-se necessária à medida que a própria Administração deve seguir prazos para promover a revisão de seus atos, não sendo, portanto, adequado que inexistisse qualquer limitação à revisão de atos provocada pelo interessado. No entanto, houve excesso por parte do legislador, ao unificar os prazos dos institutos da decadência e da prescrição.
No atual momento, o problema se acentua, em face da proximidade do vencimento do prazo decadencial ora em vigor que tem levado milhares de cidadãos a procurar as agências da Previdência Social e órgãos do Poder Judiciário, notadamente dos Juizados Especiais Federais.
Há, por parte da sociedade em geral, em todo o país, clamor quanto aos efeitos que decorrerão da manutenção do prazo decadencial ora previsto, que atingiria milhares de cidadãos, os quais, por não terem oportunamente exercido seu direito de pleitear a revisão, por desconhecimento ou falta de acesso à Justiça e à Previdência seriam impedidos de fazê-lo posteriormente. Agrava o fato a circunstância de que em algumas localidades importantes, como é o caso do Estado do Rio de Janeiro, o último dia do prazo que vinha sendo noticiado pelo meios de comunicação será feriado local (dia 20 de novembro).
(…)
Há que se registrar, contudo, que as inúmeras modificações ocorridas ao longo dos últimos anos na legislação previdenciária têm exigido grande esforço do Poder Judiciário e dos próprios segurados, no sentido de aquilatar a extensão de seus eventuais direitos. Tal situação tem gerado muitas demandas, as quais, na vigência do atual prazo, tendem a multiplicar – pela simples pressão de que haveria uma decadência do direito de revisão – a formulação de pedidos no exíguo prazo que estaria por findar.
(…)
Ainda que o entendimento possa não ser unânime, é de se considerar que melhor atende ao interesse público que se promova a dilação do prazo decadencial, evitando-se, por força de conflitos de interpretação, a aplicação imediata de interpretação restritiva, quer pelo Poder Judiciário, quer pelo Poder Executivo, razão pela qual impõe-se ampliar para dez anos o prazo de decadência ora firmado pelo art. 103 da Lei nº 8.213, na forma ora proposta.
Finalmente, por respeito ao princípio da igualdade e para melhor resguardar o interesse da coletividade de beneficiários e contribuintes da previdência social, bem como para manter a coerência do sistema, também se altera o prazo decadencial para a Administração Previdenciária rever atos administrativos por ela editados.
(…)
Inconstitucionalidade do prazo decadencial do art. 103-A da Lei 8.213/91
A leitura dessa exposição de motivos demonstra que a principal preocupação do Poder Executivo Federal, quando elaborou o texto da Medida Provisória, era ampliar o prazo “decadencial” de que os segurados dispõem para pleitearem a revisão dos atos de concessão de benefícios previdenciários. Este prazo foi originalmente estabelecido em dez anos pela Lei nº 9.528/97, que alterou a redação do art. 103 da Lei nº 8.213/91, mas posteriormente reduzido para cinco anos pela Lei nº 9.711/98.
Ocorreu, todavia, que, sob o pretexto de se respeitar o princípio da igualdade e resguardar o interesse de toda a coletividade, mantendo-se a coerência do sistema, entendeu-se por bem incluir o art. 103-A na Lei nº 8.213/91, fixando-se um prazo decadencial, também de dez anos, para que a Administração Previdenciária reveja ou anule seus próprios atos, quando eivados de ilegalidade. Com isso, o prazo decadencial quinquenal previsto para a anulação dos atos administrativos em geral (art. 54 da Lei nº 9.784/99) deixou de ser aplicado quando se trata da concessão de benefícios previdenciários.
A equiparação dos prazos concedidos aos beneficiários do INSS e à própria autarquia para a revisão dos atos de concessão dos benefícios previdenciários com base no princípio da isonomia constitui um raciocínio simplista e equivocado.
Já faz muito tempo que a ideia de que o princípio da isonomia impõe, tão somente, que todos sejam tratados da mesma forma está superada. A doutrina constitucional ensina que a igualdade deve ser buscada tratando-se os iguais da mesma maneira, mas os diferentes de maneira distinta, na medida de sua desigualdade e com o objetivo de, com o tratamento jurídico diferenciado, igualá-los materialmente. Por essa razão é que se faz necessária uma correlação lógica entre o fator de discrímen e a desequiparação procedida.
Nas relações jurídico-previdenciárias, jamais será possível cogitar de uma igualdade fática entre a Administração e os segurados do Regime Geral de Previdência Social que autorize tratá-los de maneira idêntica. Se essa equiparação já não é possível em qualquer relação entre o Estado e seus cidadãos, muito menos o será entre o INSS e seus beneficiários.
Sabe-se, com efeito, que a maior parcela dos cidadãos acobertados pelo RGPS é composta por trabalhadores humildes, com renda reduzida, pouco instruídos e desconhecedores dos meandros da legislação previdenciária. Essas pessoas carecem, muitas vezes, dos meios materiais e instrumentais necessários ao pleno acesso aos serviços e benefícios oferecidos pelo INSS. Da mesma maneira, carecem de informações claras que lhes permitam perceber quando seus direitos são violados.
Do outro lado da relação jurídico-previdenciária está uma autarquia complexamente estruturada e especializada no gerenciamento dos benefícios previdenciários. Para isso, dispõe de um quadro técnico de servidores capacitados.
É mais do que claro, então, que as partes que compõem as relações jurídico-previdenciárias não estão, absolutamente, em pé de igualdade. Consequentemente, não é correto, sob a ótica material do princípio da isonomia, o estabelecimento de prazos idênticos para que os segurados e o INSS busquem a revisão de atos ilegais praticados por este. Deveras, se a Autarquia previdenciária é dotada de mecanismos muito mais eficientes de identificação de irregularidades e de um quadro funcional altamente capacitado para compreender e aplicar a legislação previdenciária, quando comparada aos beneficiários do RGPS, o princípio da igualdade impõe que estes últimos, na condição de hipossuficientes, tenham um tempo maior ao seu dispor para buscar a revisão de atos ilegais que os prejudiquem. O tratamento jurídico diferenciado (favorecido) em relação ao prazo revisional é necessário para o reequilíbrio de uma situação fática também diferenciada.
De maneira mais objetiva: deve-se conceder um prazo maior para a revisão de atos ilegais relacionados a benefícios previdenciários àqueles que dispõem de condições mais precárias para buscar a sua regularização. Aí está a necessária correção lógica entre o fator de discriminação e o tratamento diferenciado a ser conferido.
Ao contrário, portanto, do que deduzido na exposição de motivos da Medida Provisória nº 138/2003, o princípio da isonomia impõe que o prazo revisional de que dispõem os segurados do RGPS (art. 103, caput, da Lei nº 8.213/91) seja maior do que aquele concedido ao INSS para anular os próprios atos que resultem em efeitos favoráveis aos beneficiários (art. 103-A da Lei nº 8.213/91).
Essa já é uma razão suficiente para que seja reconhecida a inconstitucionalidade do prazo decadencial do art. 103-A da Lei nº 8.213/91. Mas há outra.
Subjacentes ao poder/dever do exercício da auto-tutela administrativa pelo INSS, quando da anulação de atos administrativos dos quais decorram efeitos favoráveis a seus segurados, estão benefícios previdenciários em vias de serem suspensos, cessados ou restringidos economicamente. Esses benefícios destinam-se, inevitavelmente, ao sustento e à manutenção da dignidade de seus titulares, caracterizando-se como direitos fundamentais sociais.
Sempre que se tratar da auto-tutela de atos administrativos que favorecerem particulares de maneira individualizada, estarão em rota de colisão o princípio da estrita legalidade, que impõe à Administração a obrigação de anular atos próprios ilegais, e, de outro lado, a confiança dos cidadãos na legitimidade dos atos praticados pelo Estado, sobretudo quando permanecem hígidos e produzindo seus regulares efeitos por tempo considerável.
Tanto a observância da legalidade como a preservação de atos jurídicos (sobretudo os emanados da Administração) viciados, mas com aparência de legalidade e cujos efeitos protraem-se no tempo são medidas que objetivam resguardar o princípio da segurança jurídica. No primeiro caso, a segurança traduz-se na certeza da operatividade do ordenamento jurídico (segurança objetiva). Já no segundo, caracteriza-se pela preservação da confiança dos cidadãos nos atos praticados pelo Poder Público e aparentemente legítimos (segurança subjetiva). Quando conflitantes em um caso concreto, os princípios da legalidade e da confiança precisam ser conciliados. É neste ponto que o instituto da decadência demonstra a sua importância.
Por um lado, a existência de um prazo decadencial para que a Administração anule os próprios atos, quando ilícitos, assegura o exercício da auto-tutela e a observância do princípio da legalidade. A decadência resguarda também, por outro lado, os interesses dos particulares favorecidos por aqueles atos a partir do momento em que o respectivo prazo é consumado, prestigiando o princípio da confiança. Assim, enquanto o prazo decadencial está curso, o interesse a ser protegido com maior ênfase é o do Estado, porque tem o dever/poder de anular seus atos. Após o decurso do prazo de decadência, o interesse resguardado passa a ser o do particular, que confiou por anos na legitimidade da conduta do Poder Público.
Ponderando os interesses em conflito, o legislador concluiu como razoável a concessão de um prazo de cinco anos para que a Administração possa anular seus próprios atos, quando deles decorram efeitos benéficos aos administrados. É o que dispõe o art. 54 da Lei nº 9.784/99. Entendeu-se, portanto, que após o decurso destes cinco anos, a proteção da confiança dos particulares favorecidos sobrepõe-se à busca incondicional pela legalidade ou mesmo pela proteção de interesses econômicos do Poder Público. Os direitos dos cidadãos a serem acobertados pela decadência podem ser das mais diversas naturezas, desde, por exemplo, a celebração de um contrato administrativo, até o recebimento de um alvará ou de vantagens remuneratórias por servidores públicos.
Inconstitucionalidade do prazo decadencial do art. 103-A da Lei 8.213/91
Ocorre que, no caso do recebimento de benefícios previdenciários, em que a vantagem obtida pelos segurados consiste em um direito fundamental que tem por escopo ampará-los nos momentos de vulnerabilidade ou incapacidade para o trabalho, o prazo para a Administração anular seus atos é o dobro daquele do qual dispõe para os atos em geral. Isso significa que a proteção conferida pelo legislador aos interesses do Estado em detrimento do particular favorecido é bem maior do que nas demais situações. Via de consequência, a confiança dos segurados na legitimidade dos atos de concessão de benefícios previdenciários tem menor proteção do Estado do que a confiança dos cidadãos em geral em relação aos demais atos.
A falta de razoabilidade e a contradição nessa distinção são clarividentes. Justamente quando o direito no qual o administrado confia é de maior relevância (direito fundamental social destinado ao amparo do segurado), a sua proteção é menor, porquanto a anulação do ato de concessão pode ocorrer em prazo maior. Contudo, a lógica impõe que, sendo o direito do particular de maior importância, a proteção seja igualmente maior ou, no mínimo, idêntica aos dos demais direitos. Um tratamento jurídico menos favorecido a um direito que merece proteção ampliada configura afronta ao princípio da igualdade material.
Submeter segurados do RGPS que estejam de boa-fé (a má-fé afasta a incidência do prazo decadencial) à possibilidade de terem seus benefícios cessados dez anos após a concessão, quando quaisquer outros atos da Administração somente podem ser anulados no prazo de cinco anos, é medida que afronta nitidamente a Constituição, seja por estar em descompasso com o princípio da segurança jurídica (proteção da confiança), seja por ir na contra-mão do princípio da isonomia.
Por esses motivos, vislumbramos a inconstitucionalidade do prazo decadencial do art. 103-A da Lei nº 8.213/91.
Bruno Henrique Silva Santos é Juiz Federal e autor do Livro Prescrição e Decadência no Direito Previdenciário 2 Ed.
- No julgamento do RE 626.489 (veja a íntegra), o STF entendeu pela constitucionalidade do prazo decadencial contido no art. 103 da Lei 8.213/91.