Novas regras de benefícios por incapacidade é analisada pelo Juiz Federal José Antonio Savaris
Publicada no dia 08/07/2016, a Medida Provisória 739 figura como a primeira medida governamental, no contexto das reformas de 2016, a dificultar o acesso à cobertura previdenciária. Seu foco foram os benefícios previdenciários por incapacidade laboral no âmbito do Regime Geral da Previdência Social – RGPS. Sobre o tema, o Juiz Federal e Professor José Antonio Savaris concedeu, em 09/07/2016, entrevista à Comunicação Social da Alteridade Editora.
Qual a importância da MP 739 publicada na última sexta-feira, dia 08/07/2016?
A MP 739 significa o primeiro ato normativo restritivo de direitos previdenciários no contexto da crise econômica enfrentada pelo Governo interino de Michel Temer. A previdência social é vista mais como um sistema de despesas sociais do que como um mecanismo indispensável de proteção social.
“Tal como já era esperado e anunciado, sempre sem diálogo, sempre com urgência e sempre sem cerimônias, a identificação de desequilíbrio orçamentário coloca a previdência social na linha de frente das medidas governamentais de austeridade.”
Daí porque se fala usualmente no “problema previdência social”. Tal como já era esperado e anunciado, sempre sem diálogo, sempre com urgência e sempre sem cerimônias, a identificação de desequilíbrio orçamentário coloca a previdência social na linha de frente das medidas governamentais de austeridade. Nesse sentido, a MP 739 é apenas a primeira de outras mini-reformas que serão realizadas na previdência social. Infelizmente isso não representa nada de novo.
Desde a promulgação da Constituição de 1988, o que mais vimos na arena politica de proteção social foi a produção de normas que, pouco a pouco, traduzem o que pode ser percebido como um verdadeiro retrocesso social. Ora no Regime Geral da Previdência Social, ora no Regime Próprio da Previdência Social, ora conjuntamente nos dos regimes públicos de previdência, as reformas jamais cessaram desde o início da década de 1990, algumas delas representando mera opção política por diminuição de gastos sociais.
Quais foram as principais mudanças feitas pela MP 739 no Direito Previdenciário?
Essencialmente, ela busca dificultar o acesso às prestações previdenciárias por incapacidade laboral (auxílio-doença e aposentadoria por invalidez) e reduzir o nível de proteção.
O que muda em relação aos requisitos de acesso aos benefícios previdenciários?
Pela MP 739, não mais se admite o aproveitamento da carência para o segurado que reingressa no Regime Geral da Previdência Social, pois o art. 11 da MP 739 revogou o parágrafo único do art. 24 da Lei 8.213/91, que permitia o aproveitamento da carência ao segurado que voltava a contribuir à Previdência Social após haver perdido a qualidade de segurado, se contasse, a partir da nova filiação, com, no mínimo 1/3 da carência exigida para a concessão do benefício pretendido. Com isso, se o trabalhador perder a qualidade de segurado – seu vínculo jurídico com a Previdência Social -, quando da nova filiação (reingresso no RGPS) terá que completar integralmente o período de carência para acesso aos benefícios.
“Se perder a qualidade de segurado, o trabalhador terá que cumprir integralmente o período de carência de 12 contribuições mensais após seu reingresso.”
Isso traz efeitos exclusivamente sobre os benefícios de auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e salário-maternidade, nos casos em que sua concessão exige carência. É preciso lembrar que não será considerada a perda da qualidade de segurado para a concessão de aposentadorias por idade, especial e por tempo de contribuição (Lei 10.666/2003, art. 3o) e que a concessão de pensão por morte, auxílio-reclusão, auxílio-acidente e salário-família independe de carência (Lei 8.213/91, art. 26).
Seria possível entender-se o contrário, isto é, que a revogação dessa regra de 1/3 facilitaria o cumprimento dos requisitos?
É verdade que se pode argumentar que, com a revogação do parágrafo único, do artigo 24, não mais seria necessário cumprir 1/3 da carência quando da nova filiação, para o aproveitamento das contribuições anteriores à perda da qualidade de segurado. Mas, uma interpretação a partir de perspectiva histórica, sistemática e teleológica, nos leva à conclusão distinta.
Antes da Lei 8.213/91, não era possível o aproveitamento da carência após a perda da qualidade de segurado. O dispositivo que passou a permitir o aproveitamento condicional da carência foi agora revogado – revogação esta que já constava da MP 242/2005, que acabou sendo rejeitada pela Congresso Nacional após sua suspensão pelo STF, ao argumento de que não atendida os pressupostos constitucionais de relevância e urgência. De qualquer sorte, com a revogação da “nova” norma, temos um retorno da sistemática anterior. E claro, a finalidade da revogação coaduna-se com as demais regras restritivas que estão na agenda reformista.
Ademais, se a regra de aproveitamento de carência não impedia totalmente o problema do reingresso com incapacidade preexistente, ensejando milhares de requerimentos de benefícios por incapacidade após o recolhimento da quarta contribuição quando da nova filiação, o aproveitamento da carência sem qualquer condicionante tornaria a previdência social extremamente aberta a condutas oportunísticas – isso justamente no campo da proteção social em que se pretende evitar os casos de concessão e manutenção indevidas de benefícios.
Em suma, a MP 739 dificulta o acesso a benefícios previdenciários por incapacidade porque agora, se perder a qualidade de segurado, o trabalhador terá que cumprir integralmente o período de carência de 12 contribuições mensais após seu reingresso, salvo nas hipóteses de dispensa de carência, isto é, se a incapacidade decorrer de acidente de qualquer natureza, doença profissional ou do trabalho, e doenças graves de tratamento particularizado (Lei 8.213/91, art. 26, II).
E o que muda em relação às ações previdenciárias nos benefícios por incapacidade?
Com a MP 739, busca-se também diminuir o nível de proteção previdenciária. A diminuição do nível de proteção pode estar relacionada com o valor dos benefícios ou com o período de sua manutenção. No caso da MP 739, pretende-se diminuir a extensão do período de gozo dos benefícios por incapacidade e isso traz importantes efeitos para o processo judicial previdenciário.
Permite-se agora, por expressa disposição legal, que o INSS convoque o segurado em gozo de benefício por incapacidade, a qualquer momento, para avaliação das condições que ensejaram a sua concessão e a sua manutenção, ainda que a concessão tenha sido realizada por força de decisão judicial. Até aqui nada de novo, penso, porque isso poderia ser realizado mesmo antes da vigência da MP 739. E ainda que a decisão judicial houvesse passado em julgado, uma vez que a coisa julgada, em se tratando de relação de trato continuativo, se dá rebus sic standibus, sendo possível sua revisão uma vez alteradas as condições de fato que justificaram a solução do litígio nos termos em que realizada.
Essa possibilidade já era identificada a partir da leitura do art. 471, II, do CPC/1973 e do art. 71 da Lei 8.212/91. É certo que ainda não se encontrava pacífico na jurisprudência a possibilidade de o INSS rever – e fazer cessar – os benefícios concedidos judicialmente, mas eram inaceitáveis as consequências advindas do posicionamento contrário, o qual colocava sob as asas do Judiciário a permanente função de verificar a persistência das condições que justificavam a concessão dos benefícios por incapacidade.
A grande questão aqui é se o INSS, segundo a nova disciplina normativa, pode rever e cessar benefícios concedidos por determinação judicial, ainda antes do trânsito em julgado. A norma, sem dúvida, acarretará sérios problemas para a condução dos processos relativos aos benefícios por incapacidade laboral. Imagine-se, por exemplo, a hipótese em que o juiz antecipa a tutela, determinando a concessão de um auxílio-doença, e o INSS, a partir de seu corpo pericial, identifica a recuperação da capacidade laboral, cessando administrativamente o benefício. O processo se encontra em curso. A tutela antecipada que determinou a concessão do benefício não foi revogada, encontrando-se em pleno vigor. E ainda assim o benefício poderá ser cessado?
“A MP 739, a rigor, não autoriza o INSS a cessar administrativamente o benefício que foi concedido na via judicial, no bojo de processo que ainda se encontra em curso, destacadamente quando a decisão judicial expressa que o benefício deve ser mantido até ulterior deliberação do juízo”.
Outra coisa, a partir de quais critérios o perito do INSS entenderá que houve recuperação da capacidade? A partir dos seus critérios primeiros, que levaram à conclusão de que o segurado estava capaz para o trabalho e não fazia jus ao benefício pretendido? Basta ao perito do INSS apenas reafirmar sua anterior conclusão no sentido da capacidade para o trabalho, desconsiderando os termos da perícia judicial que foi acolhida pelo magistrado? A resposta é negativa.
Somente pode haver a cessação do benefício concedido judicialmente se o INSS identificar que as circunstâncias de fato foram alteradas, deve expressar o que houve de mudança na condição de saúde do segurado, deve justificar, enfim, o que mudou desde a concessão do benefício para que possa requerer ao juiz do processo a revogação da tutela antecipada.
Note-se que a MP 739, a rigor, não autoriza o INSS a cessar administrativamente o benefício que foi concedido na via judicial, no bojo de processo que ainda se encontra em curso, destacadamente quando a decisão judicial expressa que o benefício deve ser mantido até ulterior deliberação do juízo. Feita a avaliação do segurado em gozo de benefício por força de decisão judicial, deve ser requerida a revogação da decisão pelo INSS, não sendo dado a uma das partes deixar de se submeter a decisão judicial por entender que aludida decisão não mais deve ser cumprida, em razão da alteração de circunstâncias de fato.
Agora isso tudo muda de figura com a adoção da alta programada para os benefícios concedidos na vida judicial, pois aí o benefício passa a ser devido por período definido, sendo, em princípio, possível a cessação do benefício após o período fixado no ato judicial que determinou sua concessão .
O que muda, então, com o emprego da alta programada para os benefícios concedidos judicialmente?
Esse é o ponto mais tormentoso das mudanças. A MP 739 expressa que “Sempre que possível, o ato de concessão ou de reativação de auxílio-doença, judicial ou administrativo, deverá fixar o prazo estimado para a duração do benefício”.
Para começo de conversa, cabe notar que o posicionamento da TNU é o de que a alta programada judicial é incompatível com o modelo imposto pela Lei n.º 8.213/91.
Pois bem, como se pode notar, a MP 739 altera o modelo da Lei 8.213/91, ao colocar como regra a fixação do termo final para a manutenção do benefício (DCB – data de cessação do benefício). E mais, na ausência de fixação do prazo, “o benefício cessará após o prazo de cento e vinte dias, contado da data de concessão ou de reativação, exceto se o segurado requerer a sua prorrogação junto ao INSS”, salvo se o segurado for considerado insuscetível de recuperação e se encontrar em processo de reabilitação profissional. Neste último caso, o benefício não será cessado até que o o segurado seja considerado reabilitado para o desempenho de atividade que lhe garanta a subsistência ou, quando considerado não recuperável, for aposentado por invalidez.
Imagine-se a concessão de um auxílio-doença por força de tutela antecipada. Se nesta decisão não for definido prazo de duração, o benefício será cessado após 120 dias a sua implantação (120 dias após a data da concessão ou reativação, segundo a Medida Provisória), exceto se o segurado requerer a sua prorrogação junto ao INSS. Os problemas apenas começam aí.
Agora imagine-se que é acolhido o pedido de prorrogação. Quais os efeitos disso para o processo? O benefício era concedido por força de tutela antecipada. Se esta fosse posteriormente revogada, a concessão do benefício perderia seus efeitos. Era um benefício concedido a título precário, provisório. Mas se o INSS admite o pedido de prorrogação, tem-se então um benefício concedido em termos definitivos, pela própria Administração. Se por qualquer motivo é revogada a tutela a final, permanecem válidos todos os efeitos do benefício prorrogado pelo INSS.
Parece-me que jamais se poderá falar em devolução dos valores recebidos por força de tutela posteriormente revogada. Como fica o processo em que há o deferimento do pedido de prorrogação? Há o reconhecimento do direito? Incidem honorários advocatícios sobre as parcelas administrativamente? O processo poderá ser julgado em seus termos finais, enquanto o benefício fica pendente de nova análise pelo INSS? Esses são apenas alguns dos problemas suscitados pela novel ordem normativa.
“O auxílio-doença com duração indeterminada não mais existirá, salvo se a decisão judicial expressar que deixa de aplicar, no caso, a regra disposta na MP, mediante motivação específica.”
Agora, mais grave. Imaginemos o contrário. A parte em gozo de auxílio-doença concedido judicialmente requer a prorrogação do benefício, porque ultrapassado o período estimado ou o prazo de 120 dias estipulado pela MP. No caso de indeferimento do pedido de prorrogação, em razão do reconhecimento da recuperação da capacidade pela perícia do INSS, como fica o processo judicial que se encontra em curso? Se a parte não concordar com a perícia do INSS – o que fatalmente ocorrerá na grande maioria dos casos -, terá de ser feita nova perícia judicial ? A ordem judicial antecipatória de tutela parece ter seus efeitos exauridos pela cessação do benefício em razão do transcurso do prazo de duração do auxílio-doença. Diante do novo requerimento da parte, terá de ser novamente concedida a tutela e assim por diante, a cada quatro ou cinco meses?
Essas são apenas algumas das questões que serão suscitadas. De qualquer sorte, parece que o auxílio-doença com duração indeterminada não mais existirá, salvo se a decisão judicial expressar que deixa de aplicar, no caso, a regra disposta na MP, mediante motivação específica. Neste último caso, o benefício deverá ser implantado pelo INSS sem especificação da DCB – data de cessação do benefício – e não poderá ser cessado, senão por ulterior decisão judicial ou, após o término do processo, mediante perícia administrativa que reconheça a recuperação da capacidade laboral.
Em que medida a alteração afeta o funcionamento dos Juizados Especiais Federais?
A percepção do auxílio-doença como um benefício de curta duração afetará decisivamente os Juizados Especiais Federais. Não apenas porque a data de estimação da recuperação deverá ser fixada, sempre que possível, pelos peritos judiciais, mas porque teremos eventualmente mais de uma perícia por processo, a fim de se verificar a persistência da incapacidade. É claro que os critérios que serão adotados pela perícia do INSS não serão os mesmos que foram adotados em determinada perícia judicial. Por essa razão, é possível antever que benefícios serão cessados administrativamente sem que a situação de fato seja alterada e nova perícia judicial poderá identificar que a cessação do benefício concedido judicialmente foi indevida.
Também o número de demandas aumentará exponencialmente. Como milhares de benefícios serão cessados, ou pela perícia médica do INSS, ou pelo transcurso do prazo estimado para a recuperação da capacidade, teremos ainda mais e mais processos judiciais dessa natureza.
“Alternativas terão de ser pensadas, porque os juizados especiais federais se encontram no limite de suas possibilidades.”
Com a mudança promovida pela MP 739, parece muito claro que o direito dos segurados virou objeto de jogo das perícias médicas, uma angustiante consequência do choque de visões e da ineficiência estatal (administrativa ou judicial) para fazer frente a uma demanda social persistente.
Quem sabe se deva pensar em uma espécie de câmara revisora de perícias médicas do INSS, mediante participação exclusiva de médicos peritos qualificados para tanto e designados pelo órgão jurisdicional competente. Com essa câmara de revisão – de natureza judicial -, que estaria a traduzir o posicionamento médico definitivo sobre a situação de capacidade laboral do segurado, as ações judiciais que versem sobre benefício por incapacidade poderiam limitar-se apenas a questões jurídicas.
De qualquer sorte, a persistirem as inovações normativas, com a conversão em lei da MP 739, alternativas terão de ser pensadas, porque os juizados especiais federais se encontram no limite de suas possibilidades e constituem objeto de grande questionamento por todos os que participam desse modelo de jurisdição.
José Antonio Savaris, 48, é juiz federal, doutor em direito da seguridade social (USP) e professor dos cursos de Mestrado e Doutorado da Univali. Pela Alteridade Editora, além de outras obras, publicou Direito Processual Previdenciário – De acordo com o Novo CPC.
Veja a íntegra da MP 739/2016, clicando aqui.